sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A democracia não é um fim


É difícil para alguns compreender o sistema democrático. Na acepção usual, democracia é o governo do povo, da maioria. Um governo democrático, nesse sentido, é aquele onde a maior parte dos cidadãos dita os rumos de uma cidade, estado ou país. Isso mesmo que de maneira indireta, como através do sistema representativo. Mas até aqui tudo bem. Não haveria motivos para crítica, uma vez que, com esse método, as minorias não mais governariam as maiorias, como nos sistemas monárquico e oligárquico. A democracia também cuidou de deixar para trás o misticismo inerente às monarquias, nas quais os reis e os nobres tinham uma suposta “legitimidade” concedida por Deus – ou pelos deuses. Contudo, apesar de ser o melhor sistema já criado, o “governo do povo” tem suas falhas, exatamente por essa crença de que o voto da maioria é inquestionável.

Os problemas na democracia se dão porque, como revelou Joseph Schumpeter, em seu Capitalismo, Socialismo e Democracia, este sistema não é um fim em si mesmo. Se tudo que fosse passível de voto fosse submetido ao crivo do povo, destituído de alguns critérios, os resultados seriam constrangedores e deploráveis. Se a própria democracia fosse levada a julgo e a maioria a julgasse inconveniente, paradoxalmente ela poderia se extinguir.

O mesmo Schumpeter fornece exemplos de atrocidades decorrentes da aplicação do método democrático, como as perseguições aos cristãos em Roma e a caça às feiticeiras na época da Inquisição, ambas com forte aprovação – e participação - das maiorias. Obviamente, as constituições devem impedir esse tipo de resultado nos países democráticos. No entanto, uma constituição que impede que o voto da maioria se consagre, não seria “anti-democrática”? Sim, seria. E é por isso que a democracia não funciona quando isolada de outros princípios.

Toda esta explanação se legitima em virtude de uma pesquisa recente do Instituto Ibope, que demonstra que 55% da população brasileira são contra o casamento de homossexuais. Diante desse resultado, alguns conservadores colocaram a Constituição acima do próprio ideal a que ela deveria se voltar: a liberdade. A liberdade das minorias – no caso, a dos homossexuais – encontra nesse caso uma restrição imposta pelo próprio método democrático. Afinal, a vontade da maioria deve ser levada em consideração em uma questão que envolve o direito e a liberdade de uma minoria?

A democracia emergiu dos Estados liberais, com a expansão das liberdades política e econômica. Sempre houve, contudo, grande preocupação com a potencial tirania inerente a esse sistema, isto é, a chamada “tirania da maioria”, termo cunhado por Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América. As minorias seriam, mesmo que incidentalmente, desfavorecidas com esse sistema.

É por isso, obviamente, que as constituições devem trazer em si toda a sorte de defesas ao indivíduo e às minorias, visando sempre a liberdade. Contudo, o sistema nomocrático – constituído pela lei – é imperfeito. Uma Constituição, desse modo, que impede o casamento de indivíduos do mesmo sexo é uma Constituição que não defende a liberdade individual e o direito dos indivíduos de estabelecer uma família e gozar dos direitos inerentes a essa instituição. Essa construção social ora denominada justiça surgiu com o objetivo da proteger o indivíduo e velar por seus direitos. E direito “não escolhe cor, sexo, credo ou classe social” – jargão muito utilizado por aí.

Voltando à pesquisa, para terminar. Como se vê, esse caso demonstra que o método democrático não deve servir como meio para decidir se uma liberdade deve ser concedida ou não. Jamais a democracia deve legitimar a preeminência da maioria sobre a minoria em casos que envolvam a liberdade e o direito. É por isso que a democracia deve servir como meio, cujo fim seja sempre a conquista de mais liberdade e justiça.

Um comentário:

Fernando Leme disse...

É por isso que desenvolvemos o tal modelinho de checks and balances. Grosso modo, em que eleições majoritárias (como as nossas para presidente, por ex.) são contrabalançadas pelo exercício do voto proporcional, próprio do legislativo. Espera-se que a divisão de funções e competências, divididas entre modelos eleitorais distintos, permita dar voz à minorias.
Muito legal o artigo. E a menção ao Schumpeter.