quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O horror do nosso vazio

Alguns dos que hoje se inflamam em virtude de uma das mais conturbadas eleições de nossa jovem democracia, décadas atrás faziam coro contra uma ditadura que perseguia e os punha à margem de qualquer liberdade. Jornalistas, políticos e intelectuais lutavam em conjunto, cada um à sua maneira, em busca do sistema político que relutava em firmar-se neste solo. Uma almejada democracia, que cuidaria de proporcionar-lhes direitos inabaláveis como o de se expressar e agir politicamente.

Este grupo, composto pelas mais distintas ideologias, imbuídos por diversos interesses, combatia o Regime Militar munidos de armas e palavras. Alguns viam no partido de oposição, o MDB, uma ferramenta de diálogo em busca da efetivação do sistema democrático. Outros agiam nas ruas, com grandes movimentações populares a fim de chamar a atenção do mundo. Também havia os que pegavam em armas, atacavam instituições do governo militar, embasados nos ideais marxistas de que somente através da luta, da derrubada violenta do sistema vigente, se poderia chegar ao que, segundo eles, seria o mais justo e humano modo de viver: o comunismo.

Juntos, liberais e socialistas, políticos progressistas e conservadores despojados do poder conseguiam coexistir amparados num ideal maior: a conquista da liberdade. Com um inimigo comum, era na junção dessas milhares de vozes que a luta ganhava força. Via-se uma solidariedade jamais alcançada nesta terra tão desacostumada com o bom-senso.

Não obstante, hoje libertos daquele inimigo comum - o regime que levou algumas centenas de personagens de nossa história, amigos e familiares destes homens de hoje -, aquela doce solidariedade transformou-se em militância acéfala. Os mesmos políticos e intelectuais que, unidos, lutavam por direitos que ora usufruímos como senso-comum, transformaram-se em inimigos declarados, incitando suas massas de seguidores a uma batalha cotidiana de golpes baixos, ataques chulos e irrefletidos.

A internet, que muitos viam e ainda veem como sendo um espaço de diálogo e convergência, tornou-se terreno frutífero para a disseminação de asneiras, de discursos vazios inerentes a leitores de pouca leitura. Onde se esperava diálogo, encontra-se uma retórica virulenta, impregnada de termos de baixo calão.

Em meio a isso, parece que a sorte está ao lado de quem não tem acesso ao ciberespaço e consegue viver muito bem desprovido de informações que parecem nada ter a acrescentar a nossa história política. Evita-se, assim, o estresse proporcionado pelo rancor e a ignorância de militantes alienados a uma coisa que mal conhecem e, talvez, nem exista.

Parece que o vazio de nossos dias, em que nada mais há a se construir, faz com que se criem causas difusas, se façam inferências insanas e esquizofrênicas a despeito de nossa atual situação política. Criam-se demônios onde, décadas atrás, viam-se super-heróis.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O difícil trabalho de conviver na democracia

“Governar com o inimigo! Governar com a oposição”, assim brada Ortega y Gasset ao refletir sobre o caráter de uma democracia liberal, o sistema que possibilita a mais alta e louvável possibilidade de coexistência. Somente numa democracia liberal as minorias têm a legitima liberdade de exercerem o direito de se expressar, de agirem política e economicamente, etc. Os ensinamentos do filósofo espanhol, contudo, em virtude de nossa peculiar intelligentsia, alheia ao significado das palavras liberdade e coexistência, soam ininteligíveis.

O espetáculo das eleições deste ano revela a indigesta imaturidade intelectual e política dos brasileiros. Governo e oposição digladiam-se em busca do poder, ou com vistas a mantê-lo. Uma guerra que nada tem de ideológica e desprovida de qualquer sentido, que amealha tanto a classe política quanto a classe acadêmica, passando irremediavelmente pelas redações. O espetáculo toma a mídia, entra nas casas, nos ambientes de trabalho sem que o cidadão, principal interessado nesta questão, consiga compreender o real significado desta obscura disputa.

“É a pura manifestação da democracia”, diriam uns. Poderia ser. Não obstante, o resvalar para o jogo de extermínio de políticos e partidos adversários revela a facilidade de se diluir a democracia, vivendo numa democracia. A manifestação do presidente Luís Inácio Lula da Silva incitando às suas massas de eleitores para que “extirpem” um partido de oposição ressoa num questionamento feito décadas atrás por Gasset em sua obra-prima, “A rebelião das massas”. Denota o filósofo como a oposição extingue-se na maioria dos países. “Em quase todos, uma massa homogênea pesa sobre o Poder público e esmaga, aniquila todo o grupo opositor”, revela.

A existência de uma oposição forte e atuante é o principal sinal da boa saúde de um sistema democrático. Sem ela, a obscuridade da ditadura voltaria inapelavelmente a nos assombrar, ou, como define o cientista político Robert Dahl, voltaríamos a viver numa hegemonia fechada, regime em que a participação política é limitada, sendo comandada por um único poder.

Dahl defende a existência de uma poliarquia, aliás, nome de sua obra maior, em que a participação e a competição política denotam a efetivação dos mais avançados ideais democráticos.

Diante disso, o que dizer de uma representação política que, retomando Ortega y Gasset, “odeia de morte o que não é ela”?

O radicalismo do Partido dos Trabalhadores lhe é inerente desde sua fundação, quando se opôs à assembleia constituinte em 1988, este um dos primeiros sinais da imaturidade política do partido fundado por Darcy Ribeiro, Sergio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, três dos maiores pensadores brasileiros.

A inconsequência juvenil ainda se manifestou na oposição desmedida às hoje elogiadas conquistas do governo de Fernando Henrique Cardoso, como o Plano Real – tido como um estelionato eleitoral que levaria o país às ruínas pelo agora candidato ao governo de São Paulo, Aloízio Mercadante -, a Lei de Responsabilidade Fiscal, as bolsas de distribuição de renda - hoje Bolsa Família -, etc.

A vitória de Dilma Rousseff, dada como certa pelos institutos de pesquisa, retrata o momento de hegemonia política fundamentada na figura do presidente Lula. Com um dos mais altos índices de aprovação já conquistados por um presidente da república, é natural que o candidato patrocinado pelo governo seja eleito, assim como Fernando Henrique o fora em 1994.

Não obstante, a hegemonia gramsciana – alvo máximo do PT com a eleição de Dilma - idolatrada pelo antes partido socialista não é por ele adotado. Para o cientista político italiano Antonio Gramsci, a hegemonia de uma classe mantém-se através da educação e da persuasão dos diversos setores da sociedade civil, sustentado também por seus intelectuais engajados. Contudo, o que se vê é um misto de politicagens peculiares aos setores mais conservadores do país.

Assim como o governo Lula tem a anuência de movimentos sociais como os sindicatos e o Movimento dos Sem Terra, banqueiros e empresários de diversos setores constituem o núcleo de sustentação da atual administração. Mas podemos muito bem conceber que tudo isso tem ligação com os financiamentos proporcionados pela Caixa Econômica Federal e pelo BNDES – o filme Lula, o filho do Brasil, patrocinado por empresas interessadas em financiamento público denota bem este caso. Do mesmo modo como os repasses públicos cada vez mais avultantes aos sindicatos parecem ter relação assimétrica com a chapa-branca em voga nos sindicatos. Com isso, jogam-se no lixo também os ensinamentos de Gramsci, este o ancoradouro ideológico do PT.

A ideia de extirpar os Democratas de nosso sistema político simboliza um dos mais abissais recursos dos movimentos totalitários. Algo recorrente a todas as ditaduras, seja de esquerda ou de direita, é extinguir partidos adversários a fim de garantir sua hegemonia.

Contudo, graças à pluralidade partidária peculiar ao Brasil, o máximo que o Partido dos Trabalhadores conseguirá é abalar as forças do maior partido de oposição ideológica, o PSDB. O bom número de partidos existentes no país, com grande representação parlamentar, impede a consagração de um regime totalitário. No entanto, nada nos livra na efetivação do maior receio de nossos democratas liberais: o PT se tornar o PRI mexicano, permanecendo décadas na mais elevada posição de nossa política.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Para relembrar FHC


Aos seis anos de idade eu nada podia entender do que se passava ao meu redor. Os jornais em cima do sofá, o olhar atento de meu pai em direção em direção à TV eram incompreensíveis. Algo, no entanto, meus sentidos decodificavam como sendo o final feliz de um conto de fadas. O Brasil mudava. O semblante mais despreocupado de meu pai relacionava-se, eu sabia, ao que era noticiado naquele amontoado de papel e no programa entediante da televisão. Na tela, a presença constante de um homem assinalava que era ele o principal responsável por toda essa movimentação.

Demorei anos para compreender aquela época. Os jornais davam conta de uma mudança, da promessa de um futuro melhor para todos os brasileiros. Eram homens, números, dinheiro. Era a política e a economia, duas “palavras” tão desconhecidas ao menino ainda semi-analfabeto, que mudavam.

Hoje alfabetizado, tanto na tela do computador quanto nos livros entre as mãos, posso traduzir cada momento do que vivi em minha infância e adolescência. As reclamações do meu pai ante o noticiário na televisão ou os momentos de tranquilidade da família. As revoltas de meus professores, que se diziam petistas e aconselhavam a mim e a meus colegas que influenciássemos nossos pais a fazerem sabe-se lá o quê. Desconhecia o significado de ser petista e do que queriam dizer quando falavam em privatização – outra palavra em voga à época. Agora compreendo o que diziam, e a lembrança de um professor de história no Ensino Médio me faz tomar o assunto como terminado. Ele falava de seu arrependimento por ter defendido e votado num presidente que, já em 2004, há dois anos no poder, ainda não havia feito nada do que prometera.

Antes de completar sete anos, em 1993, todo o país sofria com as altas constantes de produtos de primeira necessidade. Eu via frequentemente na televisão funcionários de supermercados que não paravam de remarcar o preço do arroz, do feijão, do óleo, do açúcar, etc. Milhões de brasileiros sofriam ante o aumento desses produtos acima da capacidade de compra de seus rendimentos. Era a inflação, outra palavra comum na TV que eu desconhecia por completo.

Já nessa época, alguns planos mirabolantes haviam fracassado no intuito de conter este que era o maior problema brasileiro. Somente em 1993, quando o então presidente Itamar Franco nomeou seu ministro das Relações Exteriores para o cargo responsável por sanar a inflação, Ministro da Fazenda, que uma mudança finalmente foi delineada. Era Fernando Henrique Cardoso, um sociólogo, quem assumia o cargo preferencialmente atribuído a economistas. E foi ele que em fins do mesmo ano anunciou o Plano Real.

Foi esse programa econômico que, assim que efetivado, começou a estabilizar a economia brasileira. Também foi o Plano Real o responsável pela eleição de Fernando Henrique em 1994 para a presidência da república.

A estabilização da moeda pode conter rapidamente a desvalorização do dinheiro. Finalmente, milhões de brasileiros conseguiram sair da linha da miséria. Como se nota no livro Era FHC: um balanço, organizado por Bolívar Lamounier e Rubens Figueiredo, publicado em 2002, não apenas o arroz e o feijão compunham agora definitivamente o prato do cidadão comum, mas também a carne. Passou-se a consumir menos carboidrato e mais proteína.

Estes foram os primeiros sinais de uma mudança que ajudou a construir o hoje, não mais a esperança do “Brasil do possível”, do futuro, mas do presente.

Todavia, àquela época muitas outras discussões tomavam os jornais e a televisão, e eram trazidos, como falei, por meus professores à sala de aula. Eram monstros chamados de privatização.

Lembro de um trabalho em sala de aula, onde a professora de história pediu que escrevêssemos uma redação sobre a privatização da Vale do Rio Doce. Sem hesitar, comecei a escrever sobre o que achava, lembrando o que havia ouvido dias atrás: FHC estava vendendo a estatal para traficantes, contrabandistas ou algo do gênero. Faço alguma ideia de onde devo ter ouvido isso, isto é, de quem foi o responsável por espalhar tal falácia, de uma leviandade inquestionável.

Junto à Vale do Rio Doce, estatais de telefonia foram privatizadas e cogitava-se ainda a venda da Petrobrás, da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil, etc. “FHC está vendendo o Brasil”, dizia-se. Na TV, alguns homens hoje muito conhecidos faziam estardalhaço em protesto contra as ações do governo.

Sobre as privatizações, tão criticadas pelos homens que atualmente governam este país, não preciso dizer muito. A matemática é ciência inquestionável, já a retórica política... E ademais, eles, que tanto criticaram, mantiveram em seu governo a política de privatização.

Sabemos que, graças à privatização da Vale do Rio Doce, a instituição tornou-se hoje a maior empresa brasileira. Rende em impostos uma soma muito superior ao que rendia enquanto estatal. Impostos que podem muito bem serem gastos em segurança, educação e saúde, estes sim, temas de maior prioridade de qualquer governo.

Já sobre as estatais de telefonia, as críticas inconsequentes quedam-se quando atendemos o celular, utilizamos a internet ou apenas ligamos a uma destas empresas a fim de solicitar uma linha telefônica – algo impossível antes da privatização, quando as linhas custavam caro e demoravam séculos para serem instaladas.

Em meio a isso, mudanças estruturais foram implementadas em estatais de notória importância estratégica para o país, como na Petrobrás e na Caixa Econômica Federal.

Agências compostas por representantes da sociedade civil passaram a regular e a fiscalizar empresas estatais ou já privatizadas. Um novo modelo administrativo se erigia, desinchando o estado, permitindo assim que ele se dirigisse a outras questões também importantes para o país.

Todavia, críticas podem ser feitas, como deveria ser de praxe em meio às muitas ações que podem tomar quem administra um país. Mas uma das críticas mais relevantes diz respeito à privatização da Telebrás, estatal de telefonia. Tal privatização, nas palavras do ex-ministro tucano Luiz Carlos Bresser-Pereira, era inaceitável no caso da telefonia fixa. E mesmo com a telefonia móvel, a privatização somente seria pertinente se as estatais permanecessem nas mãos de brasileiros.

Mesmo assim, com estas instituições livres da burocracia inerente ao poder público, milhões de pessoas hoje possuem linhas telefônicas e celulares. A competição neste setor incentivou investimentos por parte destas empresas, dando ao consumidor possibilidades de escolha antes improváveis.

Outras medidas, como o PROER, que impediu um colapso no sistema financeiro do país ao salvar bancos estatais como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, contribuíram para a solidez econômica brasileira na atualidade. Também a Lei de Responsabilidade Fiscal, que delimita os gastos de estados e municípios, amplamente atacada pelo Partido dos Trabalhadores, é hoje de uma das iniciativas políticas mais defendidas do governo Fernando Henrique até mesmo por seus opositores.

Afora estas iniciativas, capazes de garantir ao governo tucano lugar de destaque na história política do país, a economia hoje segue as diretrizes implantadas nos últimos anos do governo. O famoso “tripé econômico”, composto pelo câmbio flutuante, pelas metas anuais de inflação e pelo superávit primário permaneceu mesmo após a chegada de um partido tido como de esquerda ao poder.

Conquanto não tenham progredido em medidas desejáveis, saneamento básico e energia elétrica chegaram a milhões. O salário mínimo aumentou mais de 150%, passando de R$ 70 para R$ 180, um crescimento semelhante ou maior que o obtido no atual governo.

Todos estes acontecimentos passaram como que incólumes à criança e ao adolescente que cresceu e ora aqui defende um dos maiores legados de nossa história. Um breve caminhar pela história de nosso país me permite dizer sem temor de incidir em erro que Fernando Henrique Cardoso delineou o caminho para nosso atual sucesso político e econômico. Foi ele quem primeiro demonstrou ao mundo as possibilidades de um Brasil sempre esquecido mostrar, finalmente, sua grandeza.

Não é preciso, como se vê, de muito trabalho para defender oito anos de um governo que, longe da estagnação que lhe atribuem, trouxe incontáveis avanços ao país. Nenhuma propaganda ufanista é capaz de apagar uma história.

Que os defensores do atual governo, levado à tela pela imagem de Luís Inácio Lula da Silva, também possam defender seu legado. Não obstante, um governo não se mede por números, conquanto sejam eles os responsáveis pela boa ou má avaliação de uma administração. Que tragam ações que incidam, aí sim, em números que comprovem sua eficácia. Números sem ações, sem políticas públicas efetivas como causa, apenas corroboram a tese de que hoje o que se colhe foi plantado anteriormente, nos oito anos da Era FHC.