sábado, 27 de setembro de 2008

Dois homens infelizes

HOMEM PRIMEIRO
O que há de beleza na palavra cantada, nestas tantas letras já lidas, gastas pelo tempo. O que vê de belo nas palavras de um homem, tal qual tantos outros que não fundam na terra nenhuma solidez, apenas o pranto aos olhos fechados. Diga o que há nestes homens que viveram antes de ti, e apenas deixaram papéis rabiscados, palavras gravadas? São todos homens comuns, tantos já morreram e deixaram apenas essa lembrança e esse seu olhar de desconsolo por não tê-los abraçado ou beijado suas mãos.

SEGUNDO HOMEM
Não há, pois, beleza em tantas vidas? Pergunto a ti, que vês neste pedaço de papel, senão a beleza de tanta vida sofrida e ainda sim amada? Ao ouvir estes sons, quase nada mais me interessa à vida ingrata destes tempos, somente a beleza de dormir e acordar ao som dos pássaros. Tantas paisagens parecem mortas aos olhos teus, não tens mais sonhos, nem sabores nesta vida?

HOMEM PRIMEIRO
Não digas bobagem, homens são o que são, paisagens são o que sempre foram: àqueles ronda à espreita a velha e triste face da morte, nunca os deixando esquecer dos infelizes desígnios humanos. A estas aceito a beleza, mas não mais são que paisagens, ainda que belas, mortas serão pelas mãos do próprio homem.

SEGUNDO
Infeliz é o homem como tu. Não vês que a beleza está em tudo. Veja os homens que deram vida a este chão, construíram tudo, muitos esqueceram o belo, isso é certo, mas tantos outros viram a pureza nos olhos da criança, arrepiaram-se ante as palavras de amor, deram vida ao mar, ao pescador. São todos estes velhos amantes da vida, felizes foram, nisso creio.

PRIMEIRO
Triste homem serás tu. Nada mais digo. Quando vires tamanho horror perante a morte, lembrarás de mim, sábio homem destes tempos. Saberás que ao homem nada mais vale senão sua própria salvação. Sonham com o dia que seu “deus” virá à Terra, a levar os homens bons que acreditam ser.

SEGUNDO
Tens razão em tudo isso, homem sabedor da alma humana. Mas ignora a beleza de tudo. Bons homens são os que vêem beleza num simples caderno, e por ele cantam as mais belas canções, felizes são os que viram o mar numa tarde de sábado, os que conheceram o amor de uma mulher e por ela deram a vida, esta que antes carecia de sentido. Os papéis que tenho em mãos trazem-me às vidas mais singelas, no entanto, mais profundas. Minhas palavras são pouco entendidas, pouco sei, e esse pouco ganhei dos homens de outrora, estes tantos que viram na morte uma amante e na vida um mar de poesia e felicidade.
* Esta é uma singela homenagem a Dorival Caymmi, mestre que se foi há pouco. Mas deve-se ser estendida a tantos outros homens que escreveram ou cantaram a pura e simples vida humana.

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